Talvez uma das questões mais intrigantes da Bíblia seja a seguinte pergunta: Jesus revogou a lei? Se há algo que aprendi nos 5 anos que me dediquei ao estudo acadêmico de teologia, é que não devemos dar respostas apressadamente. É claro que algumas perguntas propostas não requerem muita reflexão; em contrapartida há outras sobre as quais mentes brilhantes têm refletido por séculos, sem que se chegue a um consenso. Talvez a questão proposta não seja uma das mais profundas nesse sentido, mas é comum ouvirmos respostas divergentes. De um lado, a resposta mais óbvia, a mais “igrejeira” seja: “Ele não revogou a lei, pois em Mateus 5,17-18 ele mesmo disse que não veio revogá-la, mas sim cumpri-la”. Trata-se de uma resposta clássica, válida, da qual não estou necessariamente discordando. Mas do outro do lado há aqueles que, também baseados na Bíblia, entendem que Jesus revogou a lei, e se baseiam nos escritos de Paulo que desmistificam a lei, e também no próprio Cristo que trabalhou em um sábado, quando esse era um dos mandamentos mais importante de todos? Esses são apenas alguns dos argumentos nos quais esses entendimentos se fundamentam. Talvez essa questão possa parecer um tanto quanto periférica, mas acredito que seja de fundamental importância compreender essa questão, pois isso impacta no nosso relacionamento com Deus. Quando o assunto é lei, é necessário que se façamos uma análise um pouco mais ampla tentando compreender todos os aspectos que se relacionam com ela. Não sou nenhum especialista no assunto, mas por um bom tempo isso vem instigando minha mente, o que me levou a refletir um pouco.
O relacionamento entre o homem e a lei sempre foi, e é muito tenso. Parece que nossa natureza tem dificuldade em seguir regras ou leis. Não podemos creditar isso à imperfeição humana após a queda, pois temos que lembrar que no paraíso antes da queda, Deus havia decretado somente uma proibição á raça humana. O homem ainda não estava corrompido pelo pecado, gozava de um relacionamento pleno com o criador, possuía a imagem e semelhança de Deus em sua forma mais completa e ainda era detentor da glória de Deus. Mas apesar de todos esses privilégios vivendo uma realidade perfeita, Adão e Eva optaram desobedecer a única regra que Deus lhes dera. Depois da queda a criação foi corrompida pelo pecado e a questão de se submeter à lei ficou muito mais crítica. Temos que ser sinceros em aceitar a ideia de que realmente não gostamos de seguir normas e leis. Em nosso íntimo há uma voz que nos faz viver uma máxima que diz: “desde que haja governo, eu sou contra”.
Com a queda da raça humana, Deus, em sua infinita misericórdia, colocou em prática o plano para resgatar a humanidade. Para que compreendêssemos seu amor, Deus enviaria seu próprio filho para nascer como homem, mostrar o Reino de Deus de uma forma mais palpável, pagar o preço do pecado morrendo em nosso lugar, ressuscitando e assim vencendo a morte. Como Deus viria a encarnar como homem, era necessário que ele nascesse e Deus optou em criar um povo para revelar-se à humanidade. Passaram-se aproximadamente dois mil anos desde a criação, quando Deus chamou um homem de nome Abrão. Ele era natural de Ur e seu pai era um construtor de ídolos. Sabe-se muito pouco, ou nada, sobre a vida de Abrão antes do seu chamado, que ocorreu quando tinha aproximadamente 70 anos de idade. Considerando que seu pai construía ídolos, muito provavelmente, Abrão foi criado em uma cultura idólatra e pagã. Deus iniciou um relacionamento com Abrão, mudou seu nome para Abraão (que significa “pai de uma multidão”), e deu início ao povo que viria a revelar Jeová. Como a humanidade havia perdido seu vínculo com o criador e seguia o paganismo, Deus achou por bem começar a história, criando um povo com uma nova cultura, para revelar-se ao mundo.
Abraão deixou sua terra, seus parentes para iniciar sua missão. Ele e seus filhos são os patriarcas da fé judaica e da cristã. Como Deus estava criando uma nação com uma cultura própria, era necessário que houvesse leis e regras, pois uma nova sociedade estava surgindo. E é aqui que começa a importância da lei. Uma das questões que temos que ter em mente, é que Deus foi se revelando progressivamente ao homem, à medida que este tinha capacidade de compreendê-lo. Da mesma forma que não é produtivo ensinarmos matemática científica para crianças que estão sendo alfabetizadas, o povo da época não compreenderia o plano de redenção se, de forma anacrônica, lessem os escritos paulinos, principalmente a carta aos Romanos. As leis que Deus institui no inicio da história do povo hebreu, tinham como função a regulamentação da sociedade, da vida religiosa e da vida moral. O fato de algumas leis que Deus instituiu terem mudado, não indicam que ele tenha mudado seus princípios, mas sim, que em determinado momento, uma ou outra lei tornaram-se sem propósito. O apóstolo Paulo aborda essa questão na carta que escreveu aos Colossenses, no capítulo 2, versículo 22.
Deus estabeleceu diversas leis, que foram compreendidas como regra de fé para o povo da época. Mas fazendo estudos mais aprofundados, chegamos à conclusão que a lei do Antigo Testamento pode ser classificada em relação a sua função. Como já foi citado, algumas leis eram civis, como a que temos hoje. Por exemplo: “olho por olho, dente por dente”, a questão das cidades refúgios, a responsabilidade de um irmão para com a viúva de seu falecido irmão, entre outras. Em outras palavras, tratava-se da constituição do povo judeu. Havia também a lei sacerdotal, que normatizava a forma com a qual o povo vivia sua religiosidade. Era uma infinidade de normas que ditavam as regras de como sua fé e culto a Jeová deveria ser vividas. Essas leis que determinavam os sacrifícios, os dízimos, a questão do sacerdócio entre outras questões. Muitas delas já preparavam o povo para a revelação do messias. Como exemplo, temos a questão do sacerdote. Deus determinou que houvesse uma pessoa que seria o intermediário entre o povo e Deus. A figura do sacerdote preparava o povo para que ele compreendesse de forma mais efetiva o significado redentor de Cristo. Havia também as leis morais, os 10 mandamentos, que Deus deu para Moisés. Trata-se da vontade de Deus para a vida de todos os homens. As leis civis e sacerdotais têm sua aplicação temporal, mas as morais têm outra aplicabilidade. Com raras exceções, talvez uma única, a guarda de um determinado dia a lei moral continua sendo a vontade de Deus para o homem até os dias de hoje. Como já foi abordado, parece que somos avessos à lei, mas temos que pensar que ela não foi desenvolvida para Deus mostrar sua soberania, mas sim para proteger-nos.
Hoje compreendemos que toda a lei que Deus entregou ao seu povo tinha essas três funções distintas, mas na época o povo entendia essas leis como um todo, e que ela regulamentava a espiritualidade dos homens. Como exemplo, podemos citar a questão da proibição de comer carne de porco e de animais aquáticos que não tem escamas. Tratava-se de uma questão sanitária, uma vez que havia um risco grande do surgimento de doenças relacionadas a contaminação desses animais. Mas os judeus entendiam que se ingerissem esses alimentos sua vida espiritual seria prejudicada. Deus estaria rompendo relacionamento com todo aquele que ingerisse alimentos proibidos. Fazendo uma analogia para nossa realidade, seria algo como perdermos nossa salvação por beber água de um rio e não água tratada da companhia de saneamento. Olhando para a lei, ou melhor, para as leis, considerando sua função, abre-se um horizonte mais amplo na compreensão da questão de Deus e sua lei.
No transcorrer da história, Deus fez várias alianças com o homem. Como o homem é falho, não conseguiu cumprir sua parte em nenhuma delas. Mas todas essas alianças foram uma preparação para a aliança definitiva, que é a consumada em Cristo. A aliança que Deus estabeleceu com seu povo através do profeta Moisés, tinha como elemento marcante a obediência à lei, que incluía os 10 mandamentos. Mas a salvação do homem não estava condicionada ao cumprimento da lei. Se fosse assim, ninguém se salvaria. A salvação sempre foi, e ainda é, pelo reconhecimento da nossa dependência de Deus, o arrependimento e confissão dos nossos pecados e de uma vida nos caminhos de Deus. Mas os judeus lançaram seus olhos sobre a lei. O cumprimento dela passou a ser mais importante do que o relacionamento que tinham com Deus. Ou seja, a aliança foi deturpada pelo homem e isso influencia a vivência da fé cristã até nos dias de hoje. Ainda existem cristãos, e até mesmo igrejas, que direta ou indiretamente, vinculam a questão da guarda da lei à salvação, mesmo em tempos nos quais usufruímos da graça da Nova Aliança. Jesus morreu para restabelecer nosso relacionamento com Deus, e conforme textos do Novo Testamento, a lei não tem mais poder sobre nós. Mas será que isso significa que não precisamos mais considerá-la?
Continua quarta!
